Thursday, October 22, 2009

Não uso preto

O meu cabelo não vai crescer mais. Vou cortá-lo sempre.

Não tenho medo de viver aqui sózinha, nem mesmo à noite : tenho os cães e as estrelas quando se deixam ver, como companhia.

Vou pouco à vila, só mesmo quando não o consigo evitar, toda a minha vida está aqui neste monte. Cresci aqui sózinha, com os meus pais enquanto foram vivos, sem irmãos e sem gente por perto, as minhas companhias : os bichos e as plantas...as pedras também.

Os anos da escola, só me interessaram pelos livros e por ti. De resto, nunca me interessaram os outros, as suas intrigas e brincadeiras vazias. Os professores nunca me chegaram a impressionar, por vezes havia um que chegava e parecia trazer dentro um pouco do fogo dos livros, alguma paixão das matérias - depressa se cansava e rápido se via que desistia daquele bando de campónios desinteressados e desinteressantes.
Logo se sabia que andava a tratar de fugir daquela vilória longe de tudo.

O que eu gostava mais era de voltar da escola pelos campos até ao monte. Gostava da parte em que caminhávamos juntos, dos banhos que tomávamos no rio, dos bichos que perseguíamos, gostei de começar a gostar de ti. Nunca mais saíste de mim.

O mesmo com os livros, comecei com os da escola, ganhei o hábito de ler e naqueles tempos, li tudo o que havia para ler na biblioteca da vila, durante anos foi uma das razões para lá ir, procurar mais livros para ler. Para isso, também já lá não vou mais.

A escola acabou, não ia continuar a estudar como tu e alguns outros, ir até à cidade, ficar por lá e ser como as pessoas da televisão, viver sempre entre quatro paredes fechada, usando roupas que nos apertam e obedecendo a convenções que nos tolhem, não, isso não era, nem é para mim.

Um dia encontrei-te por acaso, ainda os pais eram vivos, tinhas voltado disseste, conseguido um dos poucos cargos que a vila podia oferecer, estavas bem e tinhas familia, quiseste ir ver o rio comigo. Voltaste.

Com muitas cautelas encontrávamo-nos junto ao rio, acho que nunca ninguém descobriu, não sei como, tinhas maneira de adivinhar que eu andava pela vila, via-te de longe e pelo teu olhar sabia, que era dia de te esperar junto ao rio.

Os pais morreram, contra todos, recusei ir viver para a vila, continuei no monte, arrendei as terras de lavoura, fiquei só com o casario para mim, o jardim, a horta, o pequeno pomar e as capoeiras. O meu mundo, ocupa-me os dias desde então, alimenta-me e dá-me um excedente que uso para as ofertas que as convenções obrigam.
Sabem que como os meus pais, sou espartana, dura e suficientemente instruída para não guardar riquezas junto a mim. Nunca despertei cobiças, sou assim apagada.

Poucos dias depois da morte dos pais, apareceste-me uma noite, a pé, silenciosamente olhaste-me, soltaste a minha trança, libertaste o meu cabelo, só depois me abraçaste, entrámos. Passou a ser assim, quando podias vinhas sem te fazeres anunciar, era sempre igual : olhavas-me silenciosamente à entrada, desfazias a minha trança e só depois me abraçavas e beijavas.

Passou tempo, o Inverno inteiro e a Primavera já estava quase Verão, desde esse tempo que não aparecias. Vi a tua mulher ao longe e já não era ela. Agora é uma viúva, mais uma das velhas de negro que são dos poucos que vão restando na vila.

Fui cortar o cabelo, o meu cabelo não vai crescer mais. Não uso preto.

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