Wednesday, February 18, 2009

Las meninas




"Las Meninas" – Uma fissura no tempo
Ricardo Coelho* - E-mail





Resumo - Este ensaio traz uma nova interpretação para um dos trabalhos mais fascinantes da história da Arte Ocidental até nossos dias e que continua a ser objeto de estudos e controvérsias; estamos falando de "Las Meninas" (1656) de Diego Velázquez (1599-1660). Nossa interpretação se estrutura a partir de impossibilidades descritas no famoso ensaio homônimo "Las Meninas" do filósofo Michel Foucault e de uma detalhada análise estrutural. O quadro é reanimado à nossa maneira numa tentativa de refazer a sua execução e assim entender o famoso enigma de Velázquez. Ao final foi acrescentado um apêndice a partir de outra interpretação de um texto também intitulado "As Meninas", até pouco tempo inédito, de Ferreira Gullar sobre o trabalho de Velázquez. A confrontação das interpretações não permite uma conclusão definitiva a respeito do quadro, porém, abre uma nova forma de olhar e analisar o enigma de "Las Meninas" como uma representação que se desdobra no tempo, ou melhor, como uma fissura no tempo linear da representação, sendo impossível que a cena como a conhecemos tenha ocorrido a um só tempo.


* Ricardo Coelho é artista plastico, desenvolve trabalhos pessoais e com o grupo COMfluencia de vídeo-arte. É mestre em artes visuais pelo Instituto de Arte da UNESP onde também se formou como Bacharel em Artes Plásticas. O ensaio "Las Meninas, uma fissura no tempo" é parte integrante da dissertaçao de mestrado defendida em maio de 2003.






"Las Meninas" – Uma fissura no tempo.

Neste ensaio desenvolveremos outra interpretação para o grande enigma criado por Diego Velázquez em "Las Meninas" (fig.1). Usaremos como uma espécie de guia de nossa interpretação a brilhante leitura feita por Michel Foucault. Dela, porém, nos distanciaremos em quase toda a sua estrutura e a partir de sua própria estrutura.

É importante ainda, antes de iniciar nossa especulação, aconselhar a leitura deste ensaio de Foucault, que se encontra no livro "As palavras e as coisas"(1). É a partir de impossibilidades contidas na descrição, de brechas e dúvidas do próprio Foucault que iniciaremos este texto.

Figura 1: Las Meninas: Velásquez



Gombrich ao descrever este quadro usa o mesmo eixo da leitura de Foucault, ou seja, atribui ao espaço externo o tema da pintura. Vemos o que os reis viam; e o motivo do quadro que Velázquez executa no grande salão, na tela da qual vemos apenas o verso, são os próprios reis. O tema da pintura, numa jogada ardilosa de Velázquez, é inserido/revelado num reflexo ao fundo da sala num espelho que não pode existir como reflexo do espaço real segundo o próprio Foucault.

E Gombrich se pergunta e nós podemos tomar como nossa a sua dúvida:

"O que significa exatamente tudo isso? É possível que nunca o saibamos, mas eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da máquina fotográfica. Talvez a princesa tenha sido trazida à presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da longa pose para o quadro, e o rei ou a rainha comentasse com Velázquez que ali estava um tema digno do seu pincel. As palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que devamos essa obra prima a um desejo passageiro que somente Velázquez seria capaz de converter em realidade.(2)"

Talvez, talvez! Em vários momentos os termos da dúvida, os tempos verbais do provável ocupam, também, as descrições e suposições da interpretação de Foucault. Isto nos habilita à criação de outras suposições e assim o faremos sem querer fechar a discussão, que, como sabemos, não pode ser fechada. No entanto, o desejo passageiro pode ter sido um desejo do próprio Velázquez. Como disse Gombrich, é possível que nunca o saibamos. Porém todas essas possibilidades nos abrem o caminho para a estruturação de mais uma interpretação.





A primeira observação é de ordem estrutural e nos foi oferecida pelo tempo, tempo de existência da própria obra.

Vemos nitidamente em qualquer reprodução razoável da obra duas linhas que cortam verticalmente a tela (fig.2- ao lado), provavelmente algum material com composição diferente da tinta a óleo usado no esboço que se tornou visível com o tempo. Trata-se das duas primeiras linhas verticais da divisão áurea do quadro. O primeiro segmento passa pelo rosto da dama de honra que supostamente nos observa; deste segmento até a extremidade esquerda encontramos a segunda linha mestra do quadro que, coincidentemente, corta o rosto de Velázquez passando pela sua palheta.






Ao destacar coincidentemente queremos chamar a atenção para algo que não nos causa mais nenhuma dúvida, ou seja, a estruturação planejada da obra, de modo que cada figura tenha sido estudada detalhadamente. As subdivisões áureas continuam em toda a composição. Do segmento que corta Velázquez até o segmento da dama de honra, encontramos outro segmento cortando o rosto da princesa (fig.3). Do segmento que corta a princesa até o que corta Velázquez surge outro segmento que corta a dama de honra que oferece algo para a princesa beber (fig.4) e, traçando uma linha mediana a partir da linha que corta a dama de honra até a linha que corta a princesa, encontramos, por fim, o centro do espelho ao fundo que também corta o pequeno recipiente oferecido à menina (fig.5).





Figura 3 Figura 4 Figura 5




Esta descrição das linhas verticais pode parecer num primeiro momento inútil; no entanto, serve para reforçar a idéia de que o trabalho dificilmente representa algo que se passou de forma efetiva, ou seja, dificilmente estamos diante de um trabalho realizado a partir dos modelos a um só tempo. Isso nos libera ainda mais para as especulações que faremos a seguir.

Foucault em sua conclusão corrobora a possibilidade da criação de outras leituras ao frisar a autonomia deste quadro, desta representação em relação ao conceito clássico de representação que se funda numa noção de mimesis, de imitação da realidade.

"E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação.(3)"

Tendo já introduzido a conclusão de Foucault, tentaremos, a partir de agora, fazer uma breve descrição dos problemas levantados por ele em sua análise.

Em primeiro lugar é fundamental determinar a estrutura ou o eixo da leitura. Para Foucault o tema do trabalho está na parte externa: são os reis os modelos executados na grande tela da qual vemos apenas o verso, e isto nos é revelado pelo estratagema do espelho ao fundo da sala. As meninas, a princesa e suas damas de honra e os outros visitantes são trazidos para distrair os reis na sua longa pose.

Toda a descrição de Foucault parece extremamente clara, parece derrubar dúvida após dúvida, mas, ao final, constata-se um lugar que permanecerá para sempre vazio. O pintor não pode estar representado ao mesmo tempo em que o soberano está representado, ainda que toda a imagem/situação fosse refletida num grande espelho(4). O lugar do pintor e do modelo é o mesmo; consequentemente, é o mesmo, também, o lugar dos observadores.

Foucault estabelece o centro da composição como externo ao quadro a partir da estrutura interna da grande tela. Partindo de uma análise bem estruturada define como centros da composição o olhar da menina e o olhar dos reis no espelho e a partir das linhas que se desprendem desses olhares define efetivamente o centro da composição como exterior ao quadro.

Tudo parece resolvido, mas nos esquecemos das observações feitas por Foucault ainda na primeira parte de seu ensaio a respeito do espelho.

"Em sua clara profundidade, não é o visível que ele fita.(5)"

A falsidade do espelho como algo que reflete uma suposta realidade invisível e externa ao quadro é, em vários momentos, confirmada por Foucault e nem o precisaria. Bastaria que nos detivéssemos um pouco para perceber que nada do que poderia ser refletido naquele retângulo especular, caso se tratasse de uma representação da realidade espacial, está nele refletido.

Isto bastaria para abrir precedentes para outra leitura; porém um outro argumento organizado de maneira perfeita nos chama a atenção.

Foucault esclarece a sobreposição das funções olhantes do quadro, das funções externas do ponto "ideal e real"(6) do quadro quando fala da sobreposição entre o olhar do pintor, do modelo e do espectador, que somos nós. Este momento parece o mais frágil de toda a argumentação, apesar de, como já foi dito, impressionar pela estruturação perfeita. Foucault atribui a personagens internos do quadro as funções que ele havia determinado como essencialmente externas, como se toda a situação, organizada a partir da ótica de sua leitura, tivesse sido planejada por Velázquez.

Não acreditamos na impossibilidade de Velázquez ter organizado a sua composição desta maneira, de ter pensado estas figuras – o próprio auto-retrato , o visitante ao fundo e o reflexo dos reis ao centro - como os representantes internos desta realidade determinada inicialmente por Foucault para o espaço externo; porém, não acreditamos na eficácia desta argumentação que encontra explicação para tudo e ao final se dissolve numa impossibilidade sabida pelo autor desde o início de sua análise.

Então, nós nos utilizaremos de dois de seus principais argumentos para iniciarmos a nossa interpretação do quadro. A falsidade do espelho como ponto principal para especular outra "realidade possível" e, a partir deste argumento, discutir a "impossibilidade essencial" desta representação, o lugar do pintor e do modelo, consequentemente o nosso.

Já fizemos uma primeira análise do quadro a partir de indícios que o próprio tempo nos legou ao descrevermos a organização/divisão (fig.1 a 5) da tela através do seguimento áureo e a partir de linhas que se tornaram aparentes. Isso nos dá um certo crédito para não sermos acusados de pura especulação.

Continuemos por um instante, um pouco mais, observando a grande tela, não a de que vemos o verso na representação, mas a representação em si, onde se dá todo o espetáculo.

A harmonia e a disposição das figuras é perfeita, a luz que banha a sala parece difusa, refletida do próprio céu, como deveria ser a luz para a execução de uma boa pintura. O clima é tranqüilo e a menina, a princesa, ainda muito jovem, com cinco anos aproximadamente, está muito concentrada em algo externo ao quadro, a ponto de negligenciar o gesto da dama de honra que lhe oferece algo para beber, possivelmente, uma xícara de chá.

Não é estranho tamanha concentração para uma criança na sua idade, não nos parece mais estranha ainda a suposição de que a menina foi trazida num dado momento para distrair os seus pais reais durante uma longa pose e esta permaneça numa postura tão formal. Poderíamos pensar que não, dada a importância das figuras que estão à sua frente; porém, à sua frente estão seus pais e nós sabemos como provavelmente deveria ser a atitude da graciosa criança se estivesse ali realmente para distraí-los.



Uma curiosidade nos fez procurar a jovem princesinha em outro lugar. Sim, procurar uma outra representação da menina. Não precisamos pesquisar muito, uma única imagem foi o suficiente para nos convencer do que já estávamos convencidos. Uma pintura de 1659 da "Infanta Margarida em Vestido Azul"(fig.6) é quase uma sobreposição à pintura feita três ou quatro anos antes.


Figura 6 :
Infanta Margarida em Vestido Azul: Velásquez




É verdade que o rosto da menina não traz a mesma graça da primeira infância, está mais alongado, mas isso não vem ao caso. A "pose" é quase idêntica, mas é o olhar que nos chama a atenção. O que será que faz com que a princesa, ainda uma menina, permaneça tão concentrada em algo que está externo ao quadro? Poderíamos supor que olha para seus régios pais, afinal, o olhar com pequena diferença de ângulo (ângulo invertido) é o mesmo do outro quadro.

Poderíamos? Dificilmente. Depois de observarmos com atenção as duas pinturas, não podemos supor que ambas estejam olhando para os reis. A partir disto podemos começar a discutir o eixo estabelecido por Foucault, e não apenas por ele, mas provavelmente, por todos os que se dispuseram a esclarecer o enigma.

Em momento algum Foucault olhou para a grande pintura como o motivo a ser olhado. Ele sempre lançou seu olhar para algo que efetivamente não existe, ainda que do ponto de vista ideal, pois mesmo aí um lugar permanece vazio e assim falha toda a bela estrutura desenvolvida para explicar o segredo desta representação.

O espelho é falso. Nesse ponto concordamos com Foucault, mas este espelho pode ter outra função que não a de tornar visível o duplamente invisível, ou seja, a tela onde vemos o verso e o modelo que Velázquez executa no espaço externo – os reis.

Para que se justifique a análise deste quadro como parte do nosso trabalho podemos adiantar que Velázquez subverte a estrutura linear do tempo, a estrutura onde se funda toda a tradição da representação dentro das noções de contraposto, pelo menos, até o início do século XX.

Velázquez nos dá numa mesma superfície bidimensional a pura felicidade de vislumbrar dois instantes separados pelo tempo e pelo espaço. Para tornar isso mais claro vamos utilizar um pouco do espírito metafísico da análise de Foucault. Vamos, segundo nossa versão, contar o que se passou no grande salão onde está a tela de que vemos o verso.

Depois das primeiras observações a respeito da pose da princesa podemos afirmar que ela se encontra posando para Velázquez, seu olhar não é de espanto como supõe Foucault, e sim, como já afirmamos, de uma infantil concentração, aquela que só as crianças possuem, quando são convencidas da importância de seus atos. A disposição dos braços é a mesma da pintura de 1659 (fig.7 e 8, respectivamente), o que reforça nossa tese. (Figura 7. detalhe da fig.1 / Figura 8. detalhe da fig.2)








Ao contrário do que afirma Foucault (Velázquez e a princesa compartilham o mesmo olhar como personagens internos do quadro em direção ao tema da pintura, até agora, considerado como, externo à própria pintura) a cumplicidade entre os olhares de Velázquez e da princesa é a mesma estabelecida no retrato da "Infanta Margarida em Vestido Azul" de 1659, ou seja, entre modelo e pintor.

Velázquez pertence na essência da representação ao universo externo a ela, ainda que pertença também, neste caso, ao universo interno do trabalho como iremos esclarecer mais adiante. A mudança do eixo estabelecido por Foucault em sua leitura funda a nossa interpretação.

Numa tentativa de tornar mais clara nossa tese, pedimos àqueles que nos acompanhar para se esquecerem momentaneamente da grande tela onde vemos o verso e a própria auto-representação de Velázquez. Vamos à moda de Gombrich e do próprio Foucault descrever, como já foi dito, o que se passou no grande salão onde todo o espetáculo aconteceu.

Velázquez dispõe as meninas de maneira harmoniosa para a execução de mais um testemunho de um dos membros da família real. É importante reforçar que o ângulo de estruturação foi alterado em nossa análise. A grande tela e Velázquez dentro da representação não existem assim como o espelho. Vemos apenas as meninas e a arquitetura do salão com seus quadros, sua saída ao fundo e um trecho da grande janela à direita por onde jorra a luz.

Velázquez inicia sua pintura e num dado momento um cortesão que passa pára e fica observando da outra sala o que acontece no grande salão. Ele vê as costas das meninas e o verso da grande tela. Na sequência vê Velázquez oscilante entre observar os modelos (as meninas) e executar o grande trabalho.

Podemos perceber que sua atenção foi tomada momentaneamente, o suficiente, porém, para Velázquez fixar sua longa figura neste instante de dúvida, neste contraposto clássico entre retomar o seu sentido ou permanecer estático por mais um momento.

Então, o cortesão permanece um pouco mais e se torna testemunha de outra situação. Sem que o mestre perceba, os reis entram no salão pelas suas costas e ficam por alguns segundos observando a execução do trabalho em que sua doce filha muito concentrada é o tema principal.

Apenas para não nos perdermos: o cortesão ao fundo vê, na sequência, 1º- as costas das meninas e das outras figuras, 2º- o verso da grande tela onde Velázquez executa as meninas (o tema da pintura) , 3º- Velázquez pintando, e, 4º- os reis observando toda a cena. Lembremo-nos de que o auto-retrato de Velázquez, a grande tela e o espelho ao fundo ainda não existem.

De repente a atenção da princesa é lançada para trás do olhar de Velázquez, a menina por um instante esboça um leve sorriso ao perceber os visitantes. Velázquez também percebe que os reis estão observando tudo, e aí instaura-se a grande tensão; Velázquez está entre a família real, de costas para os reis.

Todas as suposições a partir de agora são cabíveis. Talvez Gombrich tenha razão ao supor que o rei tenha dito que aquele era um tema digno de uma grande pintura. Nós nos utilizaremos, porém, de outra parte do seu argumento, ou melhor, de outra parte do seu desejo, para continuarmos a nossa história.

"...mas eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da máquina fotográfica."(7)

Velázquez no seu gênio pode ter-se imposto o desafio de reunir toda a cena da qual fazia parte numa única superfície. O tempo e o espaço eram seus obstáculos além da relação de respeito com os seus monarcas.

Permanecer de costas para os reis na representação como efetivamente/supostamente ocorreu no momento de sua inspiração sem estar de costas para os reis numa atitude desrespeitosa aos olhos de todos, mas, principalmente, a seus olhos e aos olhos dos reis a quem, provavelmente, ofereceu o trabalho.

Velázquez, para nós, não fixa um momento real de tempo antes da invenção da máquina fotográfica. Vai além, opera uma verdadeira montagem fotográfica que poderia ser, num sentido ideal, o próprio antecedente do procedimento cinematográfico. Velázquez subverte a estrutura linear da representação na profundidade do tempo. Não podemos, portanto, entender este trabalho se procedermos a nossa análise como Foucault, dentro de uma narrativa diacrônica.

O sentido de entendimento ocidental do tempo baseado numa estrutura linear impediu até agora qualquer alteração deste eixo de leitura do trabalho de Velázquez. Este foi o motivo, também, que levou a brilhante leitura de Foucault a deixar uma lacuna analisando-a como sendo própria de uma representação que se distanciava da representação clássica fundada na imitação da realidade para se encerrar na sua própria realidade como uma representação autônoma.

O espelho falso introduzido por Velázquez no fundo do grande salão não nos mostra o que é duplamente invisível, o modelo para quem todos olham e o que seria o tema da tela onde Velázquez trabalhava. O espelho na sua profundidade fictícia é a primeira parte da montagem de um estratagema muito bem estruturado por Velázquez.

Para não nos perdermos será interessante retomar o fio de nossa história, da nossa descrição do que aconteceu no grande salão. O auto-retrato de Velázquez e a grande tela de que vemos o verso na representação final, como já havíamos dito, ainda não existem. Vemos agora o cortesão ao fundo, as meninas (o tema principal da pintura) e o retrato dos reis que acaba de ser inserido por Velázquez no falso espelho no fundo do salão.

O espelho na sua profundidade fictícia insere na superfície da representação a profundidade da quarta dimensão, um fragmento de um tempo passado, de um testemunho do próprio Velázquez ao virar-se para reverenciar seus soberanos. Para reforçarmos está idéia, poderíamos utilizar uma análise que Meyer Schapiro (8) fez para descrever um exemplo de representação do tempo na arte e o seu desenrolar dentro do espaço pictórico em perspectiva; Schapiro cita uma prática entre os pintores da Europa ocidental dos séculos XV e XVI em que estes inseriam episódios a partir do fundo que precedem ou sucedem na narrativa o assunto principal. Sabemos, naturalmente, que um reflexo estende a deformação do espaço em perspectiva, porém, é tentadora esta aproximação, principalmente, pela proximidade temporal com Velázquez um pouco posterior a estes artistas.

"A ordem dos episódios no tempo e a distância entre eles não só correspondem amplamente a uma ordem no espaço: no sistema de representação da perspectiva, o aumento ou a diminuição do tamanho das figuras corresponde, grosso modo, aos intervalos de tempo entre os acontecimentos retratados."(9)

O espelho não nos oferece o encantamento do duplo como pressupõe Foucault; ele torna visível outra dimensão do espaço. Ele não nos oferece o encantamento do duplo porque o objeto da representação são as próprias meninas como já demonstramos com as descrições anteriores.

Isto pode parecer um pouco movediço, até mesmo atrevido por entrar em confronto direto com a leitura de Foucault. Porém, tudo ficará claro, agora, que é chegada a hora de revelarmos o grande segredo do quadro. Para isso precisaremos retomar o que havíamos deixado de lado, a grande tela de que vemos o verso e o próprio Velázquez.

Como Velázquez poderia ficar de costas para os reis sem estar de costas para os reis aos olhos de todos? A solução encontrada por Velázquez é tão fantástica e nossa interpretação nos pareceu tão óbvia a ponto de não querermos nos dedicar mais profundamente a este trabalho que apresentamos agora.

Velázquez se auto-retrata posteriormente com a utilização de um espelho, provavelmente, o único e verdadeiro espelho utilizado no quadro mas que nele (no quadro), não se apresenta fisicamente em sua totalidade; porém, é latente o seu reflexo ao nos apresentar o próprio autor.

Velázquez não pode existir no quadro sem dividir conosco o lugar que por um momento também foi o dos reis, o lugar dos observadores; por isso, é o deslocamento do tema principal da pintura – as meninas – para o lado externo da superfície – os reis – o grande equivoco da interpretação deste quadro.

O tema de execução de qualquer representação como no exemplo de "Las Meninas" é, naturalmente, externo à superfície da representação e, mesmo que os reis tenham sido introduzidos posteriormente no espelho falso assim como o auto-retrato de Velázquez, essa relação essencial da representação não se altera. Mas, se um homem numa representação está olhando para o exterior da tela, seja para onde for, o tema da pintura é o homem na tela olhando para o exterior ainda que o seu olhar nos intrigue e nos faça querer adivinhar o que olha.

O enigma é causado por uma fissura no tempo linear da representação. O que vemos não se deu a um só tempo e não o seria possível dessa forma. Vemos o tema principal acrescido do passado e ainda que não nos convencêssemos disso apenas com a imagem do espelho o auto-retrato seria mais do que latente a esse respeito.

Velázquez fita a si próprio e não os reis como afirma Foucault. Introduz sua figura recuperando a tensão do passado, ou seja, permanecendo entre a família real. Assim, Velázquez divide eternamente os dois lados da representação com os reis. No interior do quadro permanece de costas para os monarcas e no exterior divide o espaço que lhe é destinado por essência, o seu reinado, o do ato da representação.

O lugar vazio deixado pela leitura de Foucault começa a se tornar claro, mas falta ainda tratar mais detidamente da grande tela que Velázquez executa no interior do quadro. Para os observadores mais atentos já se tornou clara também esta lacuna; ela merece uma atenção especial.

A pintura que não apenas Foucault supôs como sendo o retrato dos reis não existe. O retrato dos reis existe apenas como memória do passado inserida na profundidade da representação, no falso reflexo do espelho no fundo da sala, visto que, já está claro, ocorreu um equívoco no eixo até agora estabelecido na leitura do trabalho. O tema da pintura está em evidência na superfície da pintura e não no que lhe é externo.

Portanto, o que está representado na grande tela de que vemos o verso responsável pelo enigma de "Las Meninas"? A partir do que já descrevemos nos parece óbvia a resposta.

A grande tela da qual vemos o verso na representação é o que não vemos quando vamos ao Museu do Prado em Madri, ou seja, a estrutura de sustentação da própria tela.

A imagem do auto-retrato de Velázquez nos oferece o duplo num sentido ideal e nesse mesmo sentido podemos olhar o reflexo falso dos reis, pois não os vemos na parte externa. O verso da tela ao contrário, finalmente, nos oferece o verdadeiro encantamento do duplo, ou se alguém preferir, do completo, afinal, não precisamos imaginar nada, pois tudo está para nós revelado; o palco e o bastidor do espetáculo na mesma superfície da representação.

Nenhum enigma, apenas um auto-retrato feito posteriormente, onde, parte do verso da tela que o pintor executava aparece como testemunha de seu ofício dentro do espaço que o pintor acabara de executar. Pode parecer uma explicação tão inconsistente diante de tudo o que já se escreveu a respeito do trabalho a ponto de nos deixarmos enganar, negligenciando, assim, o mais importante, ou seja, a realidade material e visível da obra.

Para sermos mais convincentes voltemos a nossa atenção para essa realidade, para a pintura, para o visível. Observando a posição de Velázquez na pintura e voltando a atenção agora para a sua posição frente à pintura dentro da pintura, a qual, supostamente nos esconde o enigma, verificaremos que se trata exatamente da mesma posição.

Para ficar mais claro ainda, imaginemos tudo executado, faltando para Velázquez concluir seu trabalho apenas a realização de seu auto-retrato.

Imaginemos, então, o mestre girando a grande tela em 180º no sentido anti horário (como se quisesse voltar no tempo) dentro do espaço que acabara de executar, posicionando sua tela perto de onde estavam seus modelos, para assim, na posição correspondente ao seu desejo, não se confundir com as proporções, tendo como fundo a arquitetura que já é fundo na grande representação. Tudo isso refletido num espelho do outro lado da sala, do lado em que Velázquez esteve até agora como autor executando o tema principal (as meninas).

Deste lado da sala, o lado das suposições, externo e estranho à superfície da representação, não conhecemos nada a não ser o próprio Velázquez (como autor que se auto-retratou) e por isso, não queremos supor nada, apenas que o mestre se utilizou de um espelho para se auto-retratar.

O que vemos então? Exatamente Velázquez no lado esquerdo de sua grande obra prima com o fundo da tela aparente a se observar no espelho cujo lugar ocupamos agora. Neste momento da sua execução Velázquez se observou a partir de um ponto de vista próximo de onde estiveram seus modelos, com a arquitetura e os quadros nas suas costas visíveis no reflexo do espelho. Este foi o último ato do espetáculo de Velázquez e, quando o seu fino pincel foi suspenso pela última vez, se abriu para nós algo que jamais se encerrará.

Não é o espetáculo do duplo que Velázquez nos apresenta. É o espetáculo do tempo e do espaço. Mostra-nos, em vez de um reflexo, a frente e o verso de algo que ocorreu em dois momentos distintos no tempo e no espaço.

A grande tela pode, como Foucault descreve, ter a função de equilibrar a composição com a grande janela que irradia a luz do lado direito, janela esta que, dentro da análise metafísica de Foucault, se estende até o espaço do observador. A tela, ao contrário, pertence a outro espaço que não se estende até nós, um espaço virtual. A tela representada na representação se encerra no espaço determinado pela extremidade da própria representação, visto que são uma e a mesma coisa.

As duas visibilidades incompatíveis que Foucault aborda desde o início do texto se devem à suposição de que o centro da representação é exterior à própria representação, este centro encontra na análise de Foucault o seu duplo na tela representada na representação, a qual tem como suposto testemunho o falso reflexo dos reis no espelho falso.

Um auto-retrato sempre nos põe ao lado do autor numa sobreposição de funções olhantes, no entanto, nunca somos nós o motivo para o qual olharam os artistas ao se auto-retratarem, apesar de nos olharem quando nós os olhamos.

Nossa análise restitui para a superfície da representação o centro da própria representação relegando a este espelho a sua verdadeira função. Uma função simbólica.

A representação absorveu Velázquez no momento em que ele se auto-retratou e se ofereceu como parte do espetáculo, assim como, neste momento, tornou visível o verso do palco, ou melhor, "o bastidor" do palco onde ocorre todo o espetáculo. Velázquez sempre esteve ao nosso lado e em certo sentido participa do espetáculo do duplo oferecido pelos dois lados de sua tela, pois, como autor, é pura invisibilidade tornada visibilidade no quadro em que sua figura não ocupa o grande destaque, o qual teria num auto-retrato comum.

Nada falta a nenhum olhar, ao espectador está reservado o centro real da cena, não real de realeza como Foucault afirma numa passagem, colocando-nos como intrusos no lugar do modelo, mas real de realidade. Ao espectador é reservado o seu devido lugar, o templo da observação.

O lugar onde imperam os reis situa-se na moldura e na profundidade do espelho falso, e como reflexo de uma realidade, qualquer que seja, falsa dentro da representação clássica, pertencente ao passado, como uma imagem do passado, e sendo assim, como uma imagem distante como é distante a sua realidade na representação. E, livre, o espelho pode se dar como puro espetáculo.



Apêndice acrescentado em 22 de dezembro de 2002.

Este ensaio foi concluído em setembro de 2002 e apresentado pela primeira vez a 20 de novembro de 2002 para uma banca examinadora no Instituto de Artes da UNESP como parte do relatório de qualificação para obtenção do título de Mestre conforme consta nos registros da Instituição.

Em 07 de dezembro de 2002 foi publicado no Caderno "Folha ilustrada" da "Folha de São Paulo" um ensaio do Poeta e Crítico Ferreira Gullar a respeito do quadro "As meninas" de Velázquez e que será publicado numa coletânea de ensaios inéditos do mesmo autor pela Cosac & Naify no início de 2003 sob o título "Relâmpagos".

Neste ensaio Ferreira Gullar alterou o tradicional eixo da leitura que toma os reis na parte externa do quadro como o tema da pintura transferindo-o para a princesa e as damas de honra. Por tomarmos conhecimento desta interpretação após a conclusão de nosso trabalho preferimos não alterar a sua estrutura; no entanto, sentimos a real necessidade de analisar este "relâmpago" acrescentando ao nosso trabalho uma breve reflexão em torno da interpretação de Ferreira Gullar.

"- um espelho que não se vê, de cuja existência se sabe apenas pelas coisas que reflete: o pintor, as meninas e as mulheres, o cão e também, lá no fundo, um homem que se detém numa escada: ao seu lado, refletidas noutro espelho pequeno, as imagens do rei e da rainha, que entraram na sala, no outro extremo do aposento, fora de nossa vista." (10)

A leitura de Ferreira Gullar é direta (assume o quadro como o reflexo de um espelho; sendo assim, como o próprio autor afirma, não contraditoriamente, a construção do quadro foi feita de maneira indireta) e assume as meninas, a princesa e as damas de honra como o tema da pintura, sendo o verso da grande tela representada ao lado do pintor como em nossa interpretação a própria tela em que está representado todo o espetáculo.

A cena observada através de um espelho a um só tempo torna o reflexo dos reis no espelho ao fundo possível graças ao simples jogo de rebatimentos entre os dois espelhos (e ainda que nada do espaço real esteja refletido no espelho ao fundo passamos a considerar esta possibilidade). Realizamos então uma simulação física com dois espelhos confirmando que Ferreira Gullar havia de modo objetivo "desvendado" o segredo do quadro. Isto, num primeiro momento, foi uma grande decepção, pois havíamos dedicado um extenso tempo à observação e análise deste trabalho. Como num clarão ou como o autor denominou seu conjunto de ensaios ainda em sua maioria inéditos, com um dos "Relâmpagos" ofuscou por um momento nossos olhos e nossa interpretação.

Então o clarão se dissipou e voltando a focar o quadro percebemos que a interpretação de Ferreira Gullar continha uma outra impossibilidade. Assim como Foucault, Ferreira Gullar deixou-se iludir pelo desejo de explicar o quadro como uma cena vista a um só tempo, como uma única fotografia.

"E parece uma visão irreal esta cena real (com sua luz doce) que Velázquez fixou na tela para sempre."(11)

Ao analisarmos mais detalhadamente percebemos que havíamos deixado escapar um detalhe importante. Ao assumirmos o eixo proposto por Ferreira Gullar estávamos interpondo os reis ao tema do quadro e o grande espelho do qual Velázquez teria se utilizado para realizar através do reflexo a grande pintura. Deste modo, seria impossível a um só tempo que esta cena fosse observada como a conhecemos hoje, pois os reis estariam em suas próprias dimensões aumentadas pelo distanciamento necessário no espaço para que toda a cena fosse vista neste mesmo espelho encobrindo "As Meninas".

Esta inserção feita a partir da análise de Ferreira Gullar a respeito do quadro se tornou mais importante do que imaginávamos quando fomos surpresos pela possibilidade de termos sido enganados completamente por este enigma maravilhoso. A partir desta confrontação chegamos apenas a uma conclusão definitiva:

"Las Meninas" contém uma fissura no tempo dentro de um mesmo espaço na representação; ou seja, a cena não pode ter ocorrido como a vemos num único momento de um presente qualquer que seja.

Assim seria mais simples assumirmos parte da interpretação de Ferreira Gullar, bastaria dividirmos a execução do quadro em dois momentos. 1º - A execução do tema da pintura através de um grande espelho. 2º - a execução do retrato dos reis no reflexo rebatido no espelho ao fundo. Isto poderia explicar a ausência de qualquer reflexo dos personagens no espelho onde estão os reis, pois as meninas que se encontram no raio de refração do pequeno espelho ao fundo já não estariam mais no espaço e assim, este espelho parcialmente livre de sua relação com a realidade ganharia mais força ainda dentro de nossa interpretação com seu valor simbólico reforçado.

E, livre, o espelho pode se dar como puro espetáculo.



Agradecimentos:

Agradeço ao Professor Dr. José Leonardo do Nascimento pelo primeiro incentivo no estudo deste trabalho de Velázquez, assim como muitos outros ainda em 1997, quando eu ministrei minhas primeiras aulas no seu curso de História da Arte com base em interpretações estruturais, inclusive do trabalho em questão.

Agradeço a Antônio Vilenílson Vilar Feitosa e Heloisa Helena Furquim de Almeida Vilar Feitosa pelas revisões e suas valiosas opiniões a respeito da clareza do texto no decorrer do desenvolvimento do trabalho.

Agradeço ainda o apoio de meu orientador Professor Dr. Milton Sogabe durante todo o mestrado, o que me possibilitou a tranqüilidade necessária para que a pesquisa se tornasse realidade.




(1) FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos)
(2) GOMBRICH, E.H.. A História da Arte (15º edição). Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro(RJ): Editora LTC,1993. p.321,323
(3) FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos); p. 21.
(4) Num ensaio inédito, publicado no caderno "Folha Ilustrada" do Jornal "Folha de São Paulo" p. E4, do dia 07 de dezembro de 2002, Ferreira Gullar apresenta o quadro "As Meninas" de Velázquez como o reflexo de um espelho. Após o final foi acrescentado uma breve análise desta intrigante interpretação de Ferreira Gullar.
(5) FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos) p.9.
(6) FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos) p. 19.
(7) GOMBRICH, E.H.. A História da Arte (15º edição). Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro(RJ): Editora LTC,1993. p.323
(8) SCHAPIRO, Meyer. A unidade da arte de Picasso. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2002. p.89.
(9)Ibid., p.90.
(10) GULLAR, Ferreira. As Meninas. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 de dez. 2002. Folha Ilustrada, p. E4.
(11) Ibid., p. E4.



Referências Bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção tópicos)
GOMBRICH, E.H.. A História da Arte (15º edição). Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro(RJ): Editora LTC,1993.
GULLAR, Ferreira. As Meninas. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 de dez. 2002. Folha Ilustrada, p. E4.
SCHAPIRO, Meyer. A unidade da arte de Picasso. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2002.

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